Observando o Rio de Sangue

Já faço parte do cenário trágico
Cadeira cativa no balcão, lugar reservado
Fiz mestrado em morticínio, em cotidiano
Em malandragem, ignorância, o pior do ser humano

Diretor na escola da vida, na sarjeta
Emoção pra acabar de calmante, tarja preta
O comentarista que não precisa de tira-teima
Pra lance irregular do sistema sem

Surpresa com sátira, festa sádica
De quem reduziu a cinzas o dono da fábrica
Enquanto eu viro o copo, o traficante ilustra a uzi
Do lado do pivete jogando bolinha de gude

O jornal cobrindo um enforcado com cinto
De tão normal não causa dó, vejo uma pá de bico rindo
Chorei por dentro com a menina
Pouco maior que minha filha
Por cinco reais fazia chupeta, dava a vagina

O pai ficou dez anos preso sonhando com o alvará
Que só veio pra alma, carne apodreceu lá
De longe identifico a maquete falsa de bandido
Enche o cu de crack, invade a goma do vizinho

Sequestra faxineiro, rouba pirueiro
De varal em varal com um rombo no peito
Faz uma cara que os maluco encapuzado de Opala
Passaram a cinco por hora com as M10 cuspindo bala

Fizeram um mar de sangue que boiava oito corpo
Fiquei no meio dos caco, me fingindo de morto
O ladrão faz o papel de Estado no bairro
Comida, proteção, por isso a festa quando é resgatado

Aqui a justiça funciona, o júri é implacável
Que o diga o estuprador
Que no meio do mato virou churrasco
Relatando a mortalidade maior que de país em guerra
Outro indigente sem emprego no bar da favela

Sou telespectador do filme de terror
Outro indigente no mar de sangue da guerrilha
Sou telespectador do filme de terror
De camarote VIP onde a sirene faz a trilha

Sou telespectador do filme de terror
Outro indigente no mar de sangue da guerrilha
Sou telespectador do filme de terror
De camarote VIP onde a sirene faz a trilha

Indo pra aula, a molecada uniformizada
Achando cápsula de 45 deflagrada
Um já fuma cigarro, perderam a inocência
Só vão pra escola porque tem merenda

O professor não tem salário nem estímulo
Carteira quebrada, falta de giz, livro completa o ciclo
Na porta o traficante alicia o menor
Pra depois esquartejar se não pagar o pó

Na creche as crianças com piolho, lêndea
Funcionário despreparado
E um mês acampando pra pegar a senha
A expressão é de cansaço no rosto enrugado
Que põe flanela o dia inteiro em retrovisor de carro

Socorro, socorro, meu pai tá quase morto
Esperou a ambulância dois dias fazer o socorro
Enquanto você sonha com cruzeiro marítimo
A mulher sonha aqui com a provisória do marido

Único órgão do Estado presente no bairro
É o PM sem mandado invadindo seu barraco
Dando soco na sua mãe, mandando calar a boca
Vai, puta, quero o revolver, agiliza, porra!

É só ver o águia dourado que o gambé se empolga
Faz diligência pra escrever com bala em volta da droga
Sem TV, vem vender arma, cobrar pedágio
Ter participação no lucro do tráfico

380, escopeta, replay de cena
Mais lobo mau indo atrás de porquinho em Moema
Outro plano infalível de perícia minuciosa
Do tipo que vê jóia até com vigia na porta

À noite os comentários, um de moto fugiu
Três já era e um tá coordenando o helicóptero da civil
A sirene do carro funerário faz a trilha
Eu com meu copo de pinga observo a guerrilha

Sou telespectador do filme de terror
Outro indigente no mar de sangue da guerrilha
Sou telespectador do filme de terror
De camarote VIP onde a sirene faz a trilha

Sou telespectador do filme de terror
Outro indigente no mar de sangue da guerrilha
Sou telespectador do filme de terror
De camarote VIP onde a sirene faz a trilha



Credits
Writer(s): Carlos Eduardo Taddeo, Dum-dum
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