Canino

Trocamos dias pelas noites.
Tua voz, teus olhos e teu sorriso
dissiparam trevas no meu peito.
Nos vestimos um para o outro
e num jogo lento e perigoso,
como quem brinca
de inventar sentidos,
eu fui seu peão e seu cavalo
no xadrez da intuição.

E assim fomos despindo melodias:
um jazz mofado em tempo ímpar,
teus seios desenhados no cetim,
os vestígios de whisky
num copo esquecido,
o batom impresso
na taça de vinho,
e tudo que se ouviu
não podendo ser dito.

sabe? eu não esperava um querer-te tanto
e gostava de crê-lo recíproco.
No rompante das madrugadas
tuas unhas arranham
a pele imaginária
dos meus sonhos
e o nó do teu indicador
entre teus dentes
desperta em mim
alguns demônios.
Pequenos diabretes
de querer-te ardente,
arfante, úmida e febril
em meus dedos, língua e mãos.

Todo dia juro silêncio,
juro não buscar-te tão cedo,
e quando me pego pensando
já me percebo querendo
desenhando um plano de fuga perfeito.
Um roteiro clichê:
eu e você contra o mundo
cinema mudo,
frisante rosê.

A embriaguez do teu sorriso
e meu olhar mareado.
A culpa e o crime sem castigo.
Anel sem dedo.
Chave sem cadeado.
Dente sem boca.
Teto sem parede.
Tempero sem comida.
Pelo sem pele.
Lábio sem língua.
Saliva seca.
Disritmia.
Ta-qui-car-dia.
Pressão sanguínea
na ponta dos dedos
e na ponta dos dedos
você topou o texto.
Falta alugar o teatro,
convidar conhecidos,
lotar as cadeiras vazias,
vender ingressos e pipoca
e desfilar essa trama entre
Shakespeare e Nelson Rodrigues.
Único ato até surgir um sátiro,
ou um ser qualquer que diga:
"que um amor assim consiga
da madrugada fria ao calor do dia
ser mais prosa que poesia,
no nascedouro de um sonho,
enquanto a realidade dormia".



Credits
Writer(s): Almir Chiaratti
Lyrics powered by www.musixmatch.com

Link