Sob o trópico de câncer
"O câncer é a tristeza das células — (Jayme Ovalle)".
I
Sai, Câncer
Desaparece, parte, sai do mundo
Volta à galáxia onde fermentam
Os íncubos da vida, de que és
A forma inversa. Vai, foge do mundo
Monstruosa tarântula, hediondo
Caranguejo incolor, fétida anêmona
Carnívora! Sai, Câncer.
Furbo anão de unhas sujas e roídas
Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo
Que empestas as brancas madrugadas
Com teu suave mau cheiro de necrose
Enquanto largas sob as portas
Teus sebentos volantes genocidas
Sai, get out, va-t-en, henaus
Tu e tua capa de matéria plástica
Tu e tuas galochas
Tu e tua gravata carcomida
E torna, abjeto, ao Trópico
Cujo nome roubaste. Deixa os homens em sossego
Odioso mascate; fecha o zíper
De tua gorda pasta que amontoa
Caranguejos, baratas, sapos, lesmas
Movendo-se em seu visgo, em meio a amostras
De óleo, graxas, corantes, germicidas,
Sai, Câncer
Fecha a tenaz e diz adeus à Terra
Em saudação fascista; galga, aranha,
Contra o teu próprio fio
E vai morrer de tua própria síntese
Na poeira atômica que se acumula na cúpula do mundo.
Adeus
Grumo louco, multiplicador incalculável, tu
De quem nenhum Cérebro Eletrônico poderá jamais seguir a matemática.
Parte, poneta ahuera, andate via
Glauco espectro, gosmento camelô
Da morte anterior à eternidade.
Não és mais forte do que o homem — rua!
Grasso e gomalinado camelô, que prescreves
A dívida humana sem aviso prévio, ignóbil
Meirinho, Câncer, vil tristeza...
Amada, fecha a porta, corta os fios,
Não preste nunca ouvidos ao que o mercador contar!
II
Cordis sinistra
— Ora pro nobis
Tabis dorsalis
— Ora pro nobis
Marasmus phthisis
— Ora pro nobis
Delirium tremens
— Ora pro nobis
Fluxus cruentum
— Ora pro nobis
Apoplexia parva
— Ora pro nobis
Lues venérea
— Ora pro nobis
Entesia tetanus
— Ora pro nobis
Saltus viti
— Ora pro nobis
Astralis sideratus
— Ora pro nobis
Morbus attonitus
— Ora pro nobis
Mama universalis
— Ora pro nobis
Cholera morbus
— Ora pro nobis
Vomitus cruentus
— Ora pro nobis
Empresma carditis
— Ora pro nobis
Fellis suffusio
— Ora pro nobis
Phallorrhoea virulenta
— Ora pro nobis
Gutta serena
— Ora pro nobis
Angina canina
— Ora pro nobis
Lepra leontina
— Ora pro nobis
Lupus vorax
— Ora pro nobis
Tônus trismus
— Ora pro nobis
Angina pectoria
— Ora pro nobis
Et libera nobis omnia Câncer
— Amém.
III
Há 1 célula em mim que quer respirar e não pode
Há 2 células em mim que querem respirar e não podem
Há 4 células em mim que querem respirar e não podem
Há 16 células em mim que querem respirar e não podem
Há 256 células em mim que quer respirar e não podem
Há 65.536 células em mim que querem respirar e não podem
Há 4.294.967.296 células em mim que quer respirar e não podem
Há 18.446.744.073.709.551.616 células em mim que querem respirar e não podem
Há 340.282.366.920.938.463.374.607.431.768.211.456 células em mim que querem respirar e não podem.
IV
— Minha senhora, lamento muito, mas é meu dever informá-la de que seu marido é portador de um tumor maligno no fígado...
— Meu caro senhor, tenho que comunicar-lhe que sua esposa terá que operar-se de uma neoplastia do útero...
— É, infelizmente a biopsia revela um osteo-sarcoma no menino. É impossível prever...
— É a dura realidade, meu amigo. Sua mãe...
— Seu pai ainda é um homem forte, vai agüentar bem a intervenção...
— Sua avó está muito velhinha, mas nós faremos o possível...
— Veja você... E é cancerologista...
— Coitado, não tinha onde cair morto. E logo câncer...
— Há muito operário que morre de câncer. Mas câncer de pobre não tem vez...
— Era nosso melhor piloto. Mas o câncer de intestino não perdoa...
— Qual o que, meu caro, não se assuste prematuramente. Câncer não dá em deputado...
— Parece que o General está com câncer...
— Tão boa atriz... E depois, tão linda...
— Que coisa! O Governador parecia tão bem disposto...
— Se for câncer, o Presidente não termina o mandato...
— Não me diga? O Rei...
— Mentira... O Papa?...
— E atenção para a última notícia. Estamos ligados com a Interplat 666...
— DEUS ESTÁ COM CÂNCER.
Os versos acima foram publicados no jornal "O Pasquim" — Rio de Janeiro —edição nº. 47, de 07 a 13/05/1970, pág. 6. A segunda parte do poema, até o momento, ao que nos consta, ainda não publicada, será apresentada posteriormente.
I
Sai, Câncer
Desaparece, parte, sai do mundo
Volta à galáxia onde fermentam
Os íncubos da vida, de que és
A forma inversa. Vai, foge do mundo
Monstruosa tarântula, hediondo
Caranguejo incolor, fétida anêmona
Carnívora! Sai, Câncer.
Furbo anão de unhas sujas e roídas
Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo
Que empestas as brancas madrugadas
Com teu suave mau cheiro de necrose
Enquanto largas sob as portas
Teus sebentos volantes genocidas
Sai, get out, va-t-en, henaus
Tu e tua capa de matéria plástica
Tu e tuas galochas
Tu e tua gravata carcomida
E torna, abjeto, ao Trópico
Cujo nome roubaste. Deixa os homens em sossego
Odioso mascate; fecha o zíper
De tua gorda pasta que amontoa
Caranguejos, baratas, sapos, lesmas
Movendo-se em seu visgo, em meio a amostras
De óleo, graxas, corantes, germicidas,
Sai, Câncer
Fecha a tenaz e diz adeus à Terra
Em saudação fascista; galga, aranha,
Contra o teu próprio fio
E vai morrer de tua própria síntese
Na poeira atômica que se acumula na cúpula do mundo.
Adeus
Grumo louco, multiplicador incalculável, tu
De quem nenhum Cérebro Eletrônico poderá jamais seguir a matemática.
Parte, poneta ahuera, andate via
Glauco espectro, gosmento camelô
Da morte anterior à eternidade.
Não és mais forte do que o homem — rua!
Grasso e gomalinado camelô, que prescreves
A dívida humana sem aviso prévio, ignóbil
Meirinho, Câncer, vil tristeza...
Amada, fecha a porta, corta os fios,
Não preste nunca ouvidos ao que o mercador contar!
II
Cordis sinistra
— Ora pro nobis
Tabis dorsalis
— Ora pro nobis
Marasmus phthisis
— Ora pro nobis
Delirium tremens
— Ora pro nobis
Fluxus cruentum
— Ora pro nobis
Apoplexia parva
— Ora pro nobis
Lues venérea
— Ora pro nobis
Entesia tetanus
— Ora pro nobis
Saltus viti
— Ora pro nobis
Astralis sideratus
— Ora pro nobis
Morbus attonitus
— Ora pro nobis
Mama universalis
— Ora pro nobis
Cholera morbus
— Ora pro nobis
Vomitus cruentus
— Ora pro nobis
Empresma carditis
— Ora pro nobis
Fellis suffusio
— Ora pro nobis
Phallorrhoea virulenta
— Ora pro nobis
Gutta serena
— Ora pro nobis
Angina canina
— Ora pro nobis
Lepra leontina
— Ora pro nobis
Lupus vorax
— Ora pro nobis
Tônus trismus
— Ora pro nobis
Angina pectoria
— Ora pro nobis
Et libera nobis omnia Câncer
— Amém.
III
Há 1 célula em mim que quer respirar e não pode
Há 2 células em mim que querem respirar e não podem
Há 4 células em mim que querem respirar e não podem
Há 16 células em mim que querem respirar e não podem
Há 256 células em mim que quer respirar e não podem
Há 65.536 células em mim que querem respirar e não podem
Há 4.294.967.296 células em mim que quer respirar e não podem
Há 18.446.744.073.709.551.616 células em mim que querem respirar e não podem
Há 340.282.366.920.938.463.374.607.431.768.211.456 células em mim que querem respirar e não podem.
IV
— Minha senhora, lamento muito, mas é meu dever informá-la de que seu marido é portador de um tumor maligno no fígado...
— Meu caro senhor, tenho que comunicar-lhe que sua esposa terá que operar-se de uma neoplastia do útero...
— É, infelizmente a biopsia revela um osteo-sarcoma no menino. É impossível prever...
— É a dura realidade, meu amigo. Sua mãe...
— Seu pai ainda é um homem forte, vai agüentar bem a intervenção...
— Sua avó está muito velhinha, mas nós faremos o possível...
— Veja você... E é cancerologista...
— Coitado, não tinha onde cair morto. E logo câncer...
— Há muito operário que morre de câncer. Mas câncer de pobre não tem vez...
— Era nosso melhor piloto. Mas o câncer de intestino não perdoa...
— Qual o que, meu caro, não se assuste prematuramente. Câncer não dá em deputado...
— Parece que o General está com câncer...
— Tão boa atriz... E depois, tão linda...
— Que coisa! O Governador parecia tão bem disposto...
— Se for câncer, o Presidente não termina o mandato...
— Não me diga? O Rei...
— Mentira... O Papa?...
— E atenção para a última notícia. Estamos ligados com a Interplat 666...
— DEUS ESTÁ COM CÂNCER.
Os versos acima foram publicados no jornal "O Pasquim" — Rio de Janeiro —edição nº. 47, de 07 a 13/05/1970, pág. 6. A segunda parte do poema, até o momento, ao que nos consta, ainda não publicada, será apresentada posteriormente.
Credits
Writer(s): Vinicius De Moraes
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