A Vítima

Então Cocão, aí
Não leva a mal não, mas aí vai fazer um tempo que eu to querendo fazer essa...
Essa pergunta pra você aí
Fala aí
Tem como você falar daquele acidente lá, eu sei que é meio chato
Nah é nada, é nada (Embaçado)
Saber a gente fala né mano
Vamo' lá
Foi dia ó
Lembro
Eu lembro que nem hoje, ó
Vish até arrepia (Vish)
Dia 14 de outubro de 94
Eu tava morando no Leblon tá ligado (Só)
Aí o Opala tava, Opala tava na oficina do Di lá (Pode crer)
A gente ia fazer um barato à noite, tá ligado? (Ah ha)
A gente ia se trombar em Pinheiros
Eu não sei se você se lembra disso, ai (Pode crer)
Porque você... saia com, com o Kleber
Direto pra Pinheiros
Você ia direto, e nós...
Tava eu, ia eu, o Brown, o Blue pra Zona Sul pra Pinheiros...

Naquela noite eu acordei e não sabia onde estava
Pensei que era sonho, o pesadelo apenas começava
Aquela gente vestida de branco
Parecia com o céu, mas o céu é lugar de santo

Os caras me perguntando: E aí mano cê tá legal?
Cheiro de éter no ar nunca é bom sinal
Dor de cabeça, tontura
Aquela sala rodava estilo brisa de droga, loucura

Sangue na roupa rasgada
Fio desutura me costura, porra gente não vale nada
Do que adianta você ter o que quer
Sucesso, dinheiro, mulher, beijando seu pé

E num piscar de olhos é foda
Você é furado igual pneu sem valor numa cadeira de roda

O que que eu to fazendo aqui
Não quero admitir
Agora é tarde, tarde, tarde

(Lamento) Meus parceiros me contaram
Cena após cena, passo à passo que presenciaram
Mano foi um arregaço na Marginal
Você capotou, teve até uma vítima fatal

Da Zona Sul e tal, sentido ao centro
01:00 da manhã, lembrei daquele momento
Vários Opalas, mó carreata
E eu logo atrás da primeira Barca diplomata

To dirigindo ali no volante
Opala cinza escuro, 2Pac no alto-falante
Por um instante tive um mal-pressentimento
Mas não liguei, não dei conta, não tava atento

Que merda, um cara novo morreu
Fatalidade é uma imprudência, divergência, fudeu
Ele deixou uma mulher que esperava um filho
Um evangélico que nem conheceu o filho

Um suspiro perdi a calma
Vi uma faca atravessando a minha alma
Olhei no espelho e vi um homem chorar
A mídia, a justiça, querendo me fuzilar

Virei notícia, primeira página
Um paparazzi focalizou a minha lágrima
Um repórter da Globo me insultou
Me chamava de assassino, aquilo inflamou

Tumultuou, nunca vi tanto carniceiro
Me crucificaram, me julgaram no país inteiro
Pena de morte, se tiver sorte
Cadeira elétrica se fosse América do Norte

Opinião pública influenciada
Era um réu sem direito a mais nada
O mundo tinha desabado
Na lei de Deus fui julgado, na lei do homem condenado

Então Kleber, o cara morreu mano
É então, agora é daqui pra frente Cocão
Não tem mais jeito, tá ligado, não se abala não
Tem que ficar firme
Nós tá junto aí

Dois anos e pouco de audiência
Pra mim já era o início da minha penitência
Aquele prédio no Fórum é mó tortura
Ali na frente sempre para várias viaturas

O movimento é intenso o tempo inteiro
Parece o trânsito, o tráfego, um formigueiro
Advogado pra cima, pra baixo
Ganhando dinheiro com mais um réu, eu acho

Registrei um cara algemado entrando
De cabeça baixa, me parecia um cara branco
Esperando a vez de ser solicitado
Julgado, talvez até se pá libertado

Escoltado, vários gambé
Esse aí não deve ser um preso qualquer
Com a mão pra trás olhando pra parede
Fui beber água, me deu mó sede

Uma ligação com urgência
Meu advogado, com o resultado da sentença
O celular tava falhando (Ahn, alô)
Não dá pra escutar, mas eu to indo pra aí falou, to chegando

É irmão, fui de metrô
Aquele frio na espinha que eu tinha então voltou
A cada estação ele aumentava
Eu não sabia se descia ou se continuava

A procura de uma distração
Olhava o vagão lotado, a movimentação
Aquele povo indo pra algum lugar
Trabalhar, estudar, passear, roubar, sei lá

Vi uma mina bonita, discreta
Pinta de modelo, corpo de atleta
Eu vi um cara lendo concentrado
Naipe de estudante, daqueles filhos dedicados

Vi uma tia crente em pé cansada
De cor escura com a pele enrugada
Ela me fez lembrar
Parece a mãe da vítima, como será que ela deve tá?

Cheguei no prédio da Ipiranga com a São João
Respirei fundo, subi a manga do meu camisão
Decisão, eu tô trêmulo
Mó responsa não, não entendo

Muita calma sempre é preciso
Proibido fumar li o aviso
Um porteiro tiozinho lembra meu pai
Que andar? Qual andar que você vai?

No décimo, me sinto péssimo
A balança fez questão de mais um acréscimo
Elevador quebrado
Tem dia que é melhor não acordar que dá tudo errado

Fui pela escada contando cada degrau
Cada passada chegava o juízo final
Tive a sensação de alguém me olhando
Parecia me seguir, tava ali me gorando

Senti um calafrio
Recordei daquela cena que você não viu
Do capote, de um grito forte, dos holofotes
Um vacilo seu (já era), resulta em morte

Daquela Kombi velha partida ao meio
Daquela hora que eu tentei pisar no freio
Andar por andar, onde eu to não importa
Lembra da vítima? Cheguei na porta

Então Smurf, é isso aí mano, deu pra você entender?
É embaçado em Cocão, que fita hein
É o seguinte aí, passou aí acho que uns 3 anos tá ligado, 3, 4 anos de corre pra lá e pra cá (Pode crer)
Tentando se acertar com a justiça, tá ligado?
Pagando o que eu devia, graças a Deus aí
Hoje eu to firmão, não devo mais nada pra ninguém
Me acertei com Deus, aí, e principalmente com a família lá, tá ligado?
Com a justiça também, e é o seguinte né
A vida tem que continuar, tá ligado?



Credits
Writer(s): Adivaldo Pereira Alves
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