O Navio Negreiro (Excerto)

Estamos em pleno mar
Era um sonho dantesco, o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar
Tinir de ferros, estalar do açoite
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar

Negras mulheres suspendendo as tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas rega o sangue das mães
Outras moças, mas nuas, espantadas
No turbilhão de espectros, arrastadas em ânsia e mágoa vãs

E ri-se a orquestra, irônica, estridente
E da ronda fantástica a serpente faz doudas espirais
Se o velho arqueja, se no chão resvala
Ouvem-se gritos, o chicote estala
E voam mais e mais

Presa nos elos de uma só cadeia
A multidão, faminta, cambaleia e chora
E dança ali
Um, de raiva delira, outro, enlouquece
Outro, que de martírios embrutece
Cantando, geme e ri

(Que navio é esse) no entanto, o capitão manda a manobra
(Que chegou agora?) E após, fitando o céu que se desdobra
(É o navio negreiro) tão puro sobre o mar
(Com o escravos de Angola) diz do fumo entre os densos nevoeiros
Vibrai rijo o chicote, marinheiros, fazei-os mais dançar

E ri-se a orquestra, irônica, estridente
E da ronda fantástica, a serpente faz doudas espirais
Qual num sonho dantesco as sombras voam
Gritos, ais, maldições, preces ressoam
E ri-se Satanás (que navio é esse)

(Que chegou agora?) Senhor Deus dos desgraçados
Dizei-me vós, Senhor Deus (é o navio negreiro)
Se é loucura, se é verdade (com escravos de Angola)
Tanto horror perante os céus

Ó mar (que navio é esse)
Por que não apagas com a esponja de tuas vagas
(Que chegou agora?) De teu manto este borrão?
Astros, noite, tempestades (é o navio negreiro)
Rolai das imensidades (com escravos de Angola)
Varrei os mares, o tufão

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?

Se a estrela se cala
Se a vaga à pressa resvala como um cúmplice fugaz
Perante a noite confusa
Dize-o tu, severa musa
Musa libérrima, audaz

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus

São os guerreiros ousados
Que, com os tigres mosqueados
Combatem na solidão
Homens simples, fortes, bravos
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão

São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também
Que sedentas, alquebradas
De longe, bem longe vêm

Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços
N'alma lágrimas e fel
Como Agar, sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael

Lá nas areias infindas
Das palmeiras no país
Nasceram crianças lindas
Viveram moças gentis

Passa um dia a caravana
Quando a virgem, na cabana
Cisma das noites nos véus
Adeus, ó choça do monte
Adeus, palmeiras da fonte
Adeus, amores, adeus

(Que navio é esse) Senhor Deus dos desgraçados
(Que chegou agora?) Dizei-me vós, Senhor Deus
(É o navio negreiro) se eu deliro ou se é verdade
(Com escravos de Angola) tanto horror perante os céus

Ó mar (que navio é esse)
Por que não apagas com a esponja de tuas vagas
(Que chegou agora?) De teu manto este borrão?
Astros, noite, tempestades (é o navio negreiro)
Rolai das imensidades (com escravos de Angola)
Varrei os mares, o tufão

E existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia
E deixa transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria

Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, musa, chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto

Auriverde pendão de minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança
Estandarte que a luz do sol encerra (que a brisa do Brasil beija e balança)
E as promessas divinas da esperança (que a brisa do Brasil beija e balança)

Tu, que dá liberdade após a guerra (que a brisa do Brasil beija e balança)
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha

(Que navio é esse?)

Fatalidade atroz que a mente esmaga
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga
Como um íris no pélago profundo

Mas é infâmia demais da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo
Andrada, arranca este pendão dos ares
Colombo, fecha a porta de teus mares

(Que a brisa do Brasil beija e balança)
(Que a brisa do Brasil beija e balança)
(Que a brisa do Brasil beija e balança...)



Credits
Writer(s): Antonio Castro Alves
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