Eu não pedi pra nascer

Entra, porra, tá aberto
Isso é hora de chegar? Cadê o dinheiro?
É que os boy não me deram hoje, mãe
Eu aqui até agora esperando você
Pra mim fumar, pra mim beber
E você não aparece
É sério, os boy não me deram, mãe
Vai, põe o dinheiro aí em cima da mesa e vai dormir
Eu tô falando que eles não me deram, mãe
Que não te deram o quê!
Se eu olhar na porra do teu bolso
E não tiver nem um real, você vai apanhar
Eu juro, mãe
Vai entrar no cacete, que hoje eu tô a fim de te matar
Eu juro, mãe, eu não tenho dinheiro, não
Deixa eu ver no seu bolso
Seu mentiroso, cadê o dinheiro?
Eu preciso do dinheiro
Cadê o dinheiro pra mim fumar, pra mim beber
Seu desgraçado
Para, tá doendo, para
Eu quero te matar hoje
Eu vou te matar na porrada

Minha mão pequena bate no vidro do carro
No braço se destaca as queimaduras de cigarro
A chuva forte ensopa a camisa e o short
Qualquer dia a pneumonia me faz tossir até a morte

Uma moeda, um passe me livra do inferno
Me faz chegar em casa e não apanhar de fio de ferro
O meu playground não tem balança, escorregador
Só a mãe vadia perguntando: quanto você ganhou?

Jogando na cara que tentou me abortar
Que tomou umas cinco injeções pra me tirar
Quando eu era neném tentou me vender uma pa de vez
Quase fui criado por um casal inglês

Olho roxo, escoriação, porra, que foi que eu fiz?
Pra em vez de tá brincando, tá colecionando cicatriz
Por que não pensou antes de abrir as pernas?
Filho não nasce pra sofrer, não pede pra vir pra terra

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

Minha goma é suja, louça sem lavar
Seringa usada, camisinha em todo lugar
Cabelo despenteado, bafo de aguardente
É raro quando ela escova os dentes

Várias armas dos outros muquiadas no teto
Na pia, mosquitos, baratas disputam os restos
Cenário ideal pra chocar a UNICEF
Habitat natural onde os assassinos crescem

Eu não queria PlayStation nem bicicleta
Só ouvir a palavra "filho" da boca dela
Ouvir o grito da janela: a comida tá pronta
Não ser espancado pra ficar no farol a noite toda

Qualquer um ora pra Deus pra pedir que ele ajude
Dê dinheiro, felicidade, saúde
Eu oro pra pedir coragem e ódio em dobro
Pra amarrar minha mãe na cama, pôr querosene e meter fogo

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

Outro dia a infância dominou meu coração
Gastei o dinheiro que eu ganhei com álbum do Timão
Queria ser criança normal que ninguém pune
Que pula amarelinha, joga bolinha de gude

Cansei de só olhar o parquinho ali perto
Senti inveja dos moleque fazendo castelo
Foda-se se eu vou morrer por isso
Obrigado, meu Deus, por um dia de sorriso

À noite, as costas arderam no couro da cinta
Tacou minha cabeça no chão, batia, batia
Me fez engolir figurinha por figurinha
Espetou meu corpo inteiro com uma faca de cozinha

Olhei pro teto, vi as armas num pacote
Subi na mesa, catei logo a Glock
Mãe, devia te matar mas não sou igual você
Em vez de me sujar com seu sangue, eu prefiro morrer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer

O seu papel devia ser cuidar de mim
Cuidar de mim, cuidar de mim
Não espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer



Credits
Writer(s): Carlos Eduardo Taddeo, Dum-dum
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