O Resto do Mundo

Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela

Eu me chamo de cheiroso como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser, Seu Doutor
Eu não tenho nome, eu não tenho identidade
Eu não tenho nem certeza se eu sou gente de verdade
Eu não tenho nada, mas gostaria de ter
Aproveita, Seu Doutor, e dá um trocado pra eu comer

Que trocado o quê, tem vergonha nessa cara suja, não?
Vai trabalhar, ô vagabundo!

Eu gostaria de ter um pingo de orgulho
Mas isso é impossível pra quem come o entulho
Misturado com os ratos e com as baratas
E com o papel higiênico usado, nas latas de lixo
Eu vivo como um bicho ou pior que isso

Eu sou o resto, o resto do mundo
Eu sou mendigo, um indigente
Um indigesto, um vagabundo
Eu sou... Eu num sou ninguém

Eu tô com fome, tenho que me alimentar
Eu posso não ter nome, mas o estômago tá lá
Por isso eu tenho que ser cara de pau
Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal
Tenho que me rebaixar a esse ponto
Porque a necessidade é maior do que a moral

Eu sou sujo, eu sou feio, eu sou antissocial
Eu não posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro, mas eu não sou cidadão

Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar
E o meu banheiro é a rua e sem papel pra me limpar
Honra? Não tenho, eu já nasci sem ela
E o meu sonho é morar numa favela

Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela

A minha vida é um pesadelo e eu não consigo acordar
Eu não tenho perspectivas de sair do lugar
A minha sina é suportar viver abaixo do chão
E ser um resto solitário esquecido na multidão

Eu sou o resto do mundo
Eu sou um mendigo, um indigente
Um indigesto, um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu não sou ninguém, eu não sou nada
Eu não sou gente

Eu sou o resto do mundo
Eu sou um mendigo, um indigente
Um indigesto, um vagabundo
Eu sou o resto
Eu não sou ninguém

Frustração, é o resumo do meu ser
Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver
Eu vejo gente nascendo com a vida ganha
E eu não tenho uma chance
Deus, me diga por quê?

Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu não chego a ser pobre, eu sou podre!
Um fracassado, mas não fui eu que fracassei
Porque eu não pude tentar, então que culpa eu terei

Quando eu me revoltar, quebrar, queimar, matar
Não tenho nada a perder, meu dia vai chegar
Será que vai chegar?
Mas por enquanto eu sou o resto

O resto do mundo
Eu sou um mendigo, um indigente
Um indigesto, um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu não sou ninguém, eu não sou nada
Eu não sou gente

Eu sou o resto do mundo
Eu sou um mendigo, um indigente
Um indigesto, um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu não sou ninguém

Eu não sou registrado, eu não sou batizado
Eu não sou civilizado, eu não sou filho do Senhor
Eu não sou computado, eu não sou consultado
Eu não sou vacinado, contribuinte eu não sou

Eu não sou comemorado, eu não sou considerado
Eu não sou empregado, eu não sou consumidor
Eu não sou amado, eu não sou respeitado
Eu não sou perdoado e também sou pecador

Eu não sou representado por ninguém
Eu não sou apresentado pra ninguém
Eu não sou convidado de ninguém
Eu não posso ser visitado por ninguém

Além da minha triste sobrevivência
Eu tento entender a razão da minha existência
Por que que eu nasci? Por que tô aqui?
Um penetra no inferno sem lugar pra fugir

Vivo na solidão, mas não tenho privacidade
Não conheço a sensação de ter um lar de verdade
Eu sei que eu não tenho ninguém pra dividir um barraco comigo
Mas eu queria morar numa favela, amigo

Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela



Credits
Writer(s): Paulo Correa De Araujo
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