Fado gago - Live

Fado triste
Fado negro das vielas
Onde, agora é que são elas
Encomendaram-me este fado
Mas só se for falado
Fado falado?
Pagam bem e dão trocado
O fado é pago
Mas eu que sou gago
Só consigo balbuciar

Melhor cantar
Mãos caprichosas
Que sebosas
Mimoseiam a guitarra
Mimoseando
O fado nefando
Que se entranha
Nas vielas
Mãos tagarelas
Indecentes
Mãos tão juntas, tão ardentes
Os dedos quentes
Insolentes
Só se amainam na guitarra

Espera aí
Já percebi
Que entoando
Mesmo falando, mesmo falando
Se falar como que em verso
Não gaguejo e até converso
Como as tais mãos na guitarra

Eram assim essas mãos
Mãos de ferro e mãos de farra
Desse Chico de má-vida
Que pra ser fiel à história
Andava na boa-vida
Com a Glória

E está bom de ver
Que o mulherio de Alfama
Que é todo de alta linhagem
Achava aquilo suspeito vem de viagem
Esse Chico marinheiro, todo feito
E vá de pendurar a âncora
Na varanda da pequena
Estão a ver a cena

E estávam de imaginar
Que dentro desse lugar
O que tinha a mercearia ali em frente
Tudo era transparente
O Chico, quando dormia
Era marinheiro em terra
Era a paz depois da guerra, a sua glória
Por isso dormiam juntos
Sem divisória

Mãos muito sábias
Tantas lábias
Nas linhas das quatro palmas
São duas almas
Irmanadas
Pelas sinas da paixão

Corpo na mão
Mão que esvoaça
E amordaça
A sensatez
E cada vez
Que o fado canta
Esqueço tanta
Da gaguez

Mas um dia, há sempre um dia
Moeda ao ar
A cara e a coroa
Viram a sorte mudar
Vamos lá explicar

É que o Chico, com a memória
De ter amor de mulher
Vez à vez, em cada porto
Não cuidou de amar a glória
Foi-se à fruta no pomar
Deixou a planta no horto

Ou seja
Resolveu catrafilar
Toda a mulher que passava
Na rua por onde a glória e aqui vai
Mas desta história
Espreitava

Ah que a glória é mulher tesa
Quando viu o Chico
Rua abaixo, rua acima
Atracado a uma pirua
Uma garina
De resto bem conhecida
Daquelas que faz p'la vida
E ela toda pimpante
E ele todo galante

Veio-lhe à boca o ciume
E a navalha foi lume
Brilhando de raiva
Todo este bairro, que saiba
Que os dois que ali vão
Vão ter de morrer
Ai, vai correr muito sangue
Eu esfolo, estrafego
Eu pego nos dois
Atiro as carcaças ao rio
E nem olho pra trás

Tudo isto faz
Alarido
E o Chico já ferido
Só tenta dizer
Glória, que fazes?
Que morro sem quase
Ter tempo de me arrepender
Dá-me uma oportunidade
E nesta cidade
Eu prometo ser teu
Eu quero morrer no mar alto
E depois ir pró céu

Mãos homicidas
Amanticidas
Assim eram se não fosse
O olhar doce
Por um instante
Desse homem tão inconstante
Mãos que da glória
Têm o nome
E em seu nome vão amar
Eu fico gago
Com o afago
Que essas mãos souberam dar

E o afagar dessas mãos
Já desenha na pele
A promessa futura
Jura, vá jura que és
Todo meu 'té ao fim
Todo, todo de mim
Glória, vou desembarcar
Dessa vida em que andava
À deriva no amor
Chico, os meus braços de mar
Dão-te abrigo e calor

E assim acaba esta história
O Chico e a Glória
Está bom de se ver
Ambos com vidas atrás
Vão atrás de uma vida
Em que é tudo viver
Quem fala assim
Não é gago
Não quero voltar a um assunto encerrado
Mas
Digam-me lá
Se eu não sou gago
E canto o fado



Credits
Writer(s): Sergio De Barros Godinho, Francisco Paulo Menano
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